segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Medo da Eternidade

Jamais esquecerei o meu aflitivo e dramático contato com a eternidade.
Quando eu era muito pequena ainda não tinha provado chicles e mesmo em Recife falava-se pouco deles. Eu nem sabia bem de que espécie de bala ou bombom se tratava. Mesmo o dinheiro que eu tinha não dava para comprar: com o mesmo dinheiro eu lucraria não sei quantas balas.

Afinal minha irmã juntou dinheiro, comprou e ao sairmos de casa para a escola me explicou:
- Como não acaba? - Parei um instante na rua, perplexa.
- Não acaba nunca, e pronto.
- Eu estava boba: parecia-me ter sido transportada para o reino de histórias de príncipes e fadas.

Peguei a pequena pastilha cor-de-rosa que representava o elixir do longo prazer. Examinei-a, quase não podia acreditar no milagre. Eu que, como outras crianças, às vezes tirava da boca uma bala ainda inteira, para chupar depois, só para fazê-la durar mais. E eis-me com aquela coisa cor-de-rosa, de aparência tão inocente, tornando possível o mundo impossível do qual já começara a me dar conta.

- Com delicadeza, terminei afinal pondo o chicle na boca.
- E agora que é que eu faço? - Perguntei para não errar no ritual que certamente deveira haver.
- Agora chupe o chicle para ir gostando do docinho dele, e só depois que passar o gosto você começa a mastigar. E aí mastiga a vida inteira. A menos que você perca, eu já perdi vários.
- Perder a eternidade? Nunca.

O adocicado do chicle era bonzinho, não podia dizer que era ótimo. E, ainda perplexa, encaminhávamo-nos para a escola.
- Acabou-se o docinho. E agora?
- Agora mastigue para sempre.

Assustei-me, não saberia dizer por quê. Comecei a mastigar e em breve tinha na boca aquele puxa-puxa cinzento de borracha que não tinha gosto de nada. Mastigava, mastigava. Mas me sentia contrafeita. Na verdade eu não estava gostando do gosto. E a vantagem de ser bala eterna me enchia de uma espécie de medo, como se tem diante da idéia de eternidade ou de infinito.
Eu não quis confessar que não estava à altura da eternidade. Que só me dava aflição. Enquanto isso, eu mastigava obedientemente, sem parar.
Até que não suportei mais, e, atrevessando o portão da escola, dei um jeito de o chicle mastigado cair no chão de areia.

- Olha só o que me aconteceu! - Disse eu em fingidos espanto e tristeza. - Agora não posso mastigar mais! A bala acabou!
- Já lhe disse - repetiu minha irmã - que ela não acaba nunca. Mas a gente às vezes perde. Até de noite a gente pode ir mastigando, mas para não engolir no sono a gente prega o chicle na cama. Não fique triste, um dia lhe dou outro, e esse você não perderá.

Eu estava envergonhada diante da bondade de minha irmã, envergonhada da mentira que pregara dizendo que o chicle caíra na boca por acaso.
Mas aliviada. Sem o peso da eternidade sobre mim.

Clarice Lispector

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Desencanto

Luz que iluminaria o meu pranto
Meus ouvidos acariciaria
Minha boca solveria neste quebranto:
o fim do dia encantaria.

Ao relento, primícias
Dentro, antropofagia:
Utopias noturnas reservo
tendo em vista a antologia.

Absorvo o tóxico entorpecente
Dos livros, poemas concernente:
Impulso ganhando a fantasia.

E, entre as paredes do espírito
trôpego, suscita a grande
d'outrora vida vazia.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Medo

Eu tenho medo de que minha vida seja nada...
Medo de não assistir nem
sequer uma alvorada brotar em mim...

Eu tenho medo de ter fases perdidas...
idades esquecidas... pesadelos eternos...
ao ponto de nem sequer mais lembrar de mim...

Eu tenho medo de viver ao relento...
cheia de tormento e ilusões fatigadas...
ao ponto de decidir a hora do meu próprio fim...

Eu tenho medo é de morrer assim...
ainda com sede do que deixei para
trás, de uma vida que nem teve fim...

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Rascunhos

Uma palavra
Um rabisco
Um pensamento

Uma lágrima
Uma dor
Um tormento

Um papel
Uma caneta
Um sustento
- Quarto adentro
passei parte da minha vida
fazendo rascunhos, escrevendo
coisas das quais nem me lembro.

domingo, 13 de setembro de 2009

Palavras

Palavra. Há algo de insípido nela. Algo de totalmente desprovido de senso, cor ou memória; lágrima, riso ou doçura. É um desenho numa folha de papel. Nem chega a ser um vazio, um espaço em branco. É simplesmente o nada.
Mas palavra é visível. E só é visível a partir de um determinado ponto, momento, circunstância. Aí sim tudo ganha significado. Tudo ganha sentido. Seja lá o lamento, rancor ou ternura. Seja lá o amargo, o doce ou o sem gosto. Pois até o sem gosto tem gosto. E até o rancor tem ternura.
E é por isso que torna-se necessário o aprendizado da incoerência. É necessário aprender a romper a linha tênue entre a razão e a sensibilidade, pois incoerência é sentir. E quem não é incoerente que se contente com sua cegueira.

sábado, 12 de setembro de 2009

Fadiga

Dê-me mais um tempo para refletir,
pensar no que vivi! Estou tão cansada,
minha alma tão fatigada que já nem me
encontro mais nesse mundo vão...

Tenha dó, piedade do meu coração!
Meu estado é contemplativo aos olhos
de quem estuda os mistérios da solidão...

Não mais fale uma palavra!
Deixe-me sossegada e em paz para que
possa encontrar caminhos diferentes
dos da ilusão...

Mate-me ou deixe-me delirar através
das palavras: pontes que me levam a
um mundo de papel, de papelão...